Isto não é um obituário, é o ponto de vista de um desconhecido que teve a sorte de nascer em liberdade e democracia.
A primeira recordação que tenho de Mário
Soares data de 1986, na candidatura a Presidente com o famoso slogan “Soares é
fixe”. Tinha 9 anos, mas recordo-me desse domingo de eleições, vendo a TV com
os meus pais, quando para surpresa de muitos, foi anunciada a sua vitória. Só
anos mais tarde percebi a importância histórica dessa vitória épica e tangencial
contra Freitas do Amaral à 2ª volta. Em toda a minha vida nunca testemunhei
algo que indicasse a preferência política dos meus pais, excetuando esse dia,
pela reação da minha mãe, percebi que muito provavelmente tinha votado no
candidato que venceu. Não sei bem como explicar mas senti aquela vitória também
como minha. Recordo-me que pela primeira e única vez na vida, desci as escadas
com minha mãe, para saudar na rua uma extensa e eufórica caravana de carros que
passavam. Curiosamente, nunca cheguei a votar em Mário Soares! Depois disso
recordo-me da primeira vez que o vi ao vivo, julgo que foi numa das famosas
presidências abertas em que se deslocou à Assembleia Regional, estando eu nas
galerias com uma turma da escola. Nesse dia pude testemunhar duas características
que lhe são atribuídas. A de homem carismático, que conseguiu cativar a maioria
das crianças já fartas dos muitos discursos e que sossegaram na sua
intervenção, bem como as suas famosas “mini-sestas” no meio dos enfadonhos
discursos de outros intervenientes.
Faz-me alguma impressão um certo
endeusamento que se costuma fazer aquando a morte de alguém, mas faz-me mais
confusão o tamanho da ignorância histórica e dos tiques fascizóides dos ataques
gratuitos nas redes sociais. Mário Soares também cometeu erros. Ninguém é perfeito e os erros e
imperfeições podem ser sempre apontados e criticados, mas no caso em concreto
julgo que os pontos positivos e o que fez por Portugal superam em grande medida.
E isso foi claro para a maioria e foi devidamente demonstrado por todos os
quadrantes políticos, estratos sociais e profissionais, por quem nunca votou
nele e especialmente pelos seus principais adversários ao longo da vida. Caso
diferente é o fenómeno dos comentário abjetos e sem sentido nas redes sociais,
que caracterizam mais quem os faz do que o visado. Em bom tempo a imprensa
nacional publicou artigos que desmistificaram os recorrentes mitos que se
propagam sobre Soares, alguns desde o tempo do Estado Novo, como o pisar da
bandeira, entre outros.
Foi admirado por muitos e odiado por
alguns, mas não é preciso gostar ou ter votado em Mário Soares para perceber a
sua importância para a democracia em Portugal e para reconhecer que foi o mais
importante político português do século XX, com destaque na história europeia e
dos poucos com dimensão internacional, como foi notório na imprensa estrangeira.
Como alguém recentemente afirmou “Soares não teve sempre
razão, mas teve razão nos momentos fundamentais”.
Admiro o facto de ter sido alguém que
tendo uma vida desafogada, dedicou mais de 30 anos da sua vida pela liberdade e
democracia em Portugal. Tendo 2 licenciaturas e tudo para ter uma carreira em
ascensão, ocupava a sua vida profissional na defesa dos prisioneiros políticos e
no combate à ditadura o que lhe trouxe muitos dissabores, como ter sido preso
12 vezes, deportado e exilado.
Foi um homem de roturas, mas sobretudo
de muitos consensos, em conspiração política permanente, contra a ditadura de
direita e prevenindo uma ditadura de esquerda, contra aqueles que foi considerando
adversários ao longo do tempo, dentro e fora do partido que fundou. Um homem contraditório, que se zangou com grandes amigos
e que fazia dos adversários amigos para a vida.
Chegou a ser um dos primeiros-ministros
mais impopulares e o mais popular de todos os Presidentes da República, com
mais de 70% de votos em 91. Foi muitas vezes excessivo, nomeadamente nos
últimos 15 anos, altura em que na maioria das vezes discordei, mas não se
escondeu no pedestal da história e enquanto teve forças manteve sempre uma
forte intervenção pública pelo que achava ser melhor para Portugal. Um homem
que nunca desistiu, sempre com coragem, até ao último dia da sua vida.
Alguns expressaram um sentimento de orfandade. Não sinto isso, apenas
agradecido e com uma certa apreensão, quando comparo Mário Soares e outros políticos
do seu tempo, com os da atualidade, tanto em Portugal como na Europa.
Em
nome da geração que sempre viveu em liberdade e democracia, obrigado
Mário.
(publicado a 20 janeiro de 2017 no Tribuna das Ilhas)
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