Num tempo em que
o mundo acelera perigosamente para os braços de um conservadorismo duro,
isolacionista e nacionalista de extrema direita, a perda do Papa Francisco é
mais do que a partida de um líder espiritual — é o silêncio que se abate sobre
uma das vozes mais lúcidas, humanas e progressistas da nossa era.
Jorge Mario
Bergoglio foi, no seio de uma Igreja tantas vezes distante da realidade dos que
mais sofrem, uma revolução serena. Um Papa com falhas, como todos os outros,
mas que teve a coragem rara de falar das feridas do mundo com bondade e
verdade. Ergueu-se contra a cultura da indiferença, defendeu os pobres como
prioridade evangélica, acolheu os migrantes como irmãos, ouviu os gritos das
minorias e desafiou os poderosos — dentro e fora da Igreja — com a firmeza dos
humildes. Denunciou a indiferença global, falou do ambiente e das alterações
climáticas, questionou os excessos do capitalismo, pediu perdão pelos crimes da
Igreja, desafiou a própria Cúria e estendeu a mão aos últimos, sempre com uma
linguagem simples e profundamente humana.
Num mundo cada
vez mais dominado por líderes autoritários, que se arvoram em “escolhidos por
Deus” para imporem políticas de exclusão, medo e divisão, Francisco foi o
contraponto necessário: um homem de fé que se recusou a usar o nome de Deus
para justificar o ódio, o egoísmo ou o retrocesso civilizacional. Enquanto
outros empunhavam a religião como arma, ele fez dela abrigo. Enquanto
proclamavam “Deus acima de tudo” para pisar os mais frágeis, ele via Deus
exatamente neles.
E não deixa de
ser reveladora e inquietante, a súbita devoção de alguns líderes populistas que
em vida desprezaram Francisco e agora, com a sua morte, se apressam a
render-lhe louvores. O mesmo político que em Portugal afirmou que “este Papa
tem prestado um mau serviço ao cristianismo” e que “tem contribuído para
destruir as bases do que é a Igreja Católica na Europa”, aparece agora
publicamente a desejar que o seu legado permaneça. Essa hipocrisia não é apenas
cínica — é perigosa. É a tentativa de apropriação póstuma de um símbolo que, em
vida, lhes fez frente. Francisco nunca se rendeu ao medo. Nunca alinhou com os
que usaram a fé como escudo para a intolerância.
Num tempo de
muros, ele construiu pontes. Agora, o seu silêncio deixa mais expostos os que
não têm voz. E nós, todos, perdemos um símbolo de fé com consciência social, de
espiritualidade com justiça, de tradição com abertura. Perdemo-lo quando mais
precisávamos da sua presença, da sua lucidez e da sua coragem. Perdemo-lo
quando mais urgente seria continuar a sua luta contra o medo, o ódio e a
indiferença.
Resta a
esperança de que o seu testemunho tenha ecoado fundo nos arcebispos e cardeais que
escolheu. Que a sua visão de uma Igreja mais pobre, mais próxima, mais
inclusiva e mais humana continue a respirar, mesmo na sua ausência.
Descansa, Francisco.
A tua luz foi branda, mas transformadora. O teu legado é um sussurro teimoso de
luz num mundo que grita trevas.
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