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Quando o país adoece

 1 - Não é apenas por tragédias individuais que uma ministra da Saúde deve sair. É por ter conduzido o SNS a um estado ainda mais difícil do que aquele que encontrou. Desde que Ana Paula Martins assumiu o cargo, o que já estava mal tornou-se pior e, em muitos casos, insustentável. As promessas de reorganização transformaram-se em cortes cegos, a prioridade passou a ser a folha de cálculo e não os doentes. O resultado está à vista: serviços que encerram, urgências em rutura, profissionais exaustos e uma população que começa a perder a confiança no sistema público.

Quando se decide cortar na despesa sem qualquer estratégia de eficiência, o que se está a fazer é escolher quem vai sofrer. E, como sempre, são os cidadãos, nomeadamente os que não têm seguro de saúde, os primeiros a pagar. Não há sinais de investimento real na capacidade do SNS, apenas uma transferência de responsabilidades para o sector privado, que cresce à custa do desmantelamento do público. A política de austeridade sanitária que se instalou fragiliza os hospitais, desmotiva as equipas e acentua as desigualdades.

Não é preciso esperar mais um escândalo ou mais uma tragédia para reconhecer o óbvio: Ana Paula Martins mostrou ser parte do problema, não da solução. E quando a saúde pública se transforma num exercício de contabilidade, perde-se o sentido mais básico da governação, o de proteger vidas. Em contrapartida, por decisão política, as empresas com lucros milionários vão ter menos IRC para pagar e o orçamento militar dispara. Prioridades claras…a bem da nação!

2 - Mas o país adoece também noutros campos. As declarações recentes do líder do grupo ultranacionalista “Reconquista”, afirmando que as mulheres são seres inferiores e que não deviam votar, revelam outra variante do mesmo vírus: o da banalização da irresponsabilidade. Mais do que insultuosas, são um sinal de perigo do que acontece quando se normaliza o discurso de extrema-direita. Quando o ódio, a intolerância e o preconceito se veste de “opiniões diferentes”, o resultado é sempre o mesmo: o retrocesso.

Ontem atacavam os imigrantes.

Hoje atacam as mulheres.

Amanha atacarão quem pensa diferente.

A liberdade e a igualdade não se perdem de um dia para o outro — perdem-se aos poucos, quando deixamos de reagir. E é precisamente essa indiferença que está a ser cultivada a diferentes níveis, seja através da gestão fria de um serviço público essencial, seja pela normalização do discurso da extrema-direita.

No final, ambos os temas convergem num ponto central: seja pela negligência institucional ou pelo ódio legitimado, o que está em causa é a confiança nas instituições, o valor da dignidade humana e a capacidade de reagir enquanto sociedade. Quando a ministra que deveria proteger a saúde pública falha o seu papel, e quando o discurso de ódio se infiltra na esfera pública como se fosse “só mais uma opinião”, as perdas não são apenas individuais, são estruturais.

Curar este país exigirá mais do que remendos ou discursos: exigirá coragem, decência e memória. E a pergunta permanece: seremos nós, enquanto cidadania, agentes dessa mudança ou expectadores do regresso ao que pensávamos ter ultrapassado?

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